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No mundo digital, vínculos reais se tornam cada vez mais frágeis

por Melissa Maciel
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Inspirada na série britânica da Netflix, “Adolescência”, reportagem revela como o universo digital pode influenciar o comportamento de jovens e desafiar pais, educadores e autoridades.

No universo frenético das redes sociais, onde likes, seguidores e vídeos virais ditam o ritmo da vida online, uma sociedade inteira, adolescente e adultos, se expõe diariamente a riscos silenciosos. A série britânica “Adolescência” da Netflix acende um alerta necessário: o perigo mora na tela.

A série “Adolescência” acende um alerta: o perigo pode estar na tela, invisível aos olhos de pais e educadores | REPRODUÇÃO/NETFLIX

Uma série de ficção. Um crime brutal. Uma avalanche de reflexões. A produção tem causado repercussão em diversos países ao tocar em feridas profundas da vida contemporânea: a solidão adolescente, a banalidade do ódio e do mal e essa violência como onipresença das redes sociais na formação da identidade. O enredo gira em torno de Jamie Miller e das relações familiares, um garoto de 13 anos, ao ser acusado de assassinar uma colega de escola. Mas, para além da trama policial, a obra escancara um universo paralelo no qual a sociedade e milhares de jovens estão imersos, em meio à confusão de linguagens do mundo virtual, que nos coloca em um desamparo de orientações.

A psicóloga e psicanalista de Torres, Cláudia Rocha, contribui para esta reportagem não apenas como profissional da saúde mental, mas também como professora, mãe e tia de adolescentes. Atuando com adolescentes desde 1992, mantém contato diário com essa fase da vida, tanto na clínica quanto em suas experiências pessoais, e é categórica ao afirmar: a série não é apenas ficção.

“A série está comovendo inúmeras pessoas no mundo inteiro”, afirma. “O efeito é efervescente e pode ser percebido nos diálogos entre famílias, nas escolas e nos consultórios.” Cláudia vê na obra uma oportunidade rara de escuta e reflexão sobre os dilemas dessa fase da vida — marcada tanto pelo crescimento quanto pela possibilidade de adoecimento emocional típicos da adolescência.

UM MUNDO OCULTO NO CELULAR

Se antes nos preocupávamos com os perigos das ruas, hoje o mal estar na civilização atual reside com os nossos medos dentro dos quartos dos próprios filhos. A dificuldade da sociedade se escancara frente a adolescência atual suscitando a profunda necessidade de reflexões e diálogos. Equipados com celulares e acesso ilimitado à internet, adolescentes mergulham em universos que escapam completamente ao controle dos adultos. O contrário também acontece: adultos, igualmente absorvidos pelas redes, tornam-se distantes do que acontece no quarto ao lado. Segundo Cláudia, parece ocorrer um borramento na hierarquia em relação às referências que os pais precisam ser. A série mostra isso com crueza, ao retratar as dificuldades enfrentadas por Jamie frente à ditadura nas pressões que ele experimenta na escola e na virtualidade. Assunto este, como um desamparo nas relações familiares, frente à angustia da adolescência na atualidade.

Os códigos e emojis tem seus significados originais modificados para dificultar a compreensão por parte de adultos

“Precisamos acompanhar de perto a vida digital dos nossos filhos”, alerta o delegado da Polícia Civil de Torres, Marcos Vinícius Muniz Veloso. Segundo ele, a série é um verdadeiro sinal de alerta para pais e responsáveis. “Mesmo quem opta por não assistir vai, inevitavelmente, ouvir por aí expressões e códigos usados pelos adolescentes, como redpill, incel, blackpill… Eles escapam da supervisão adulta com linguagens próprias, emojis e plataformas específicas.”

Entre os símbolos usados por esses grupos estão o emoji da pílula 💊 (representando a redpill, que incentiva o ódio contra mulheres), o 💯 (que faz alusão à teoria de que 80% das mulheres se interessam por apenas 20% dos homens) e até a bola de futebol americano, que simboliza desejo por menores de idade. “É perturbador, mas real. Precisamos estar atentos — não paranoicos, mas atentos”, reforça o delegado Marcos.

QUEM SÃO OS INCELS?

A sigla incel vem de involuntary celibates — celibatários involuntários — e descreve, a princípio, jovens que se sentem excluídos do “mercado” afetivo e sexual. Com o tempo, no entanto, o termo passou a designar uma subcultura online misógina, que culpa as mulheres por todas as frustrações desses rapazes. “Eles são geralmente inseguros, tímidos, com dificuldade de socialização, e passam a culpar as meninas por sua exclusão”, diz o delegado. “O discurso incel é fundamentado na ideia de que as mulheres devem ser punidas.”

Com 25 anos de experiência no magistério, Lucinara de Oliveira Réck Krás, professora de Português da rede estadual de ensino em Torres e mãe de dois adolescentes, afirma que, mesmo para educadores acostumados a lidar com jovens, é difícil compreender totalmente o que um adolescente está vivenciando. Ela destaca que os adolescentes tendem a agir em grupo para se sentirem aceitos, muitas vezes sufocando suas verdadeiras identidades — o que pode abrir espaço para o bullying e outras formas de exclusão.

O DESAMPARO DO CRESCIMENTO

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Parece que estamos à procura de uma ‘caixa de ferramentas’ para lidar com esse desamparo”, diz Cláudia

Cláudia Rocha, em sua análise sensível e profunda da série, retoma um conceito importante para entender a adolescência: o da presença do “referente” (adulto como referência). A adolescência é uma fase extremamente difícil do desenvolvimento, na qual o jovem necessita da presença de um adulto disponível para o enfrentamento, mesmo que isso não seja agradável. O jovem necessita de um adulto que o encare para construir as suas hipóteses do viver.”, diz. A psicanalista cita Freud e outros autores para explicar que a adolescência é uma fase tanto de crescimento quanto de adoecimento. “Ela remete a um passado perdido e a um futuro ainda em construção.”

A série, segundo Cláudia, evidencia a crise de todos os sistemas que deveriam proteger Jamie: família, escola, redes sociais e até a Justiça. “Não se trata de culpabilizar os pais, mas de refletir. O amor pelos filhos não basta. Parece que estamos à procura de uma ‘caixa de ferramentas’ para lidar com esse desamparo. O que não existe é uma receita de bolo. Muitos pais oscilam entre a negligência e a invasão. Quando estamos ausentes ou invasivos demais, perdemos a chance de sermos referência viva”, explica.

A PRESENÇA COMO FERRAMENTA DE CUIDADO

Atuando na biblioteca escolar, Lucinara se propõe a ser uma parceira dos alunos, oferecendo um espaço de escuta e diálogo. Ela acredita que os adolescentes estão pedindo socorro de diferentes formas e reforça que os adultos precisam aprender a “ler nas entrelinhas”, interpretar os exageros emocionais e compreender que suas dores e medos são reais.

Equilíbrio, limites e diálogo: para a mãe e educadora Lucinara, proteger os filhos no mundo digital começa dentro de casa

Para a educadora, o maior desafio da parentalidade é interpretar as demandas de um adolescente que ainda está se construindo. “Não há cartilha. O filho de ontem não é o mesmo de amanhã. Precisamos estar abertos a nos reinventar com eles”, diz. Lucinara conta que, após assistir à série, mudou sua rotina com o filho. “Passei a conversar mais, perguntar de forma menos invasiva. Descobri coisas que ele nunca teria me contado se eu continuasse só perguntando ‘como foi a escola?’.”

O delegado Marcos endossa a importância do diálogo. “O trabalho da polícia é essencial, mas insuficiente sem o olhar atento dos pais. A radicalização e o ódio se alimentam do silêncio, do isolamento. Muitos desses adolescentes são recrutados pela internet justamente porque estão sozinhos.”

A série Adolescência não traz soluções, mas oferece algo ainda mais importante: consciência, mas nos suscita uma urgência nos diálogos e reflexões

REDES SOCIAIS: FERRAMENTA OU ARMADILHA?

As plataformas citadas na série, como Discord e Reddit, são utilizadas livremente por adolescentes e jovens. “São espaços de socialização, mas também de radicalização. Ali, discursos de ódio são disseminados de forma camuflada, com linguagem própria, memes e piadas que os adultos nem sempre compreendem”, alerta o delegado.

Para Cláudia, o problema não é a tecnologia em si, mas o modo como ela é utilizada — e a ausência de mediação adulta. “A internet é o novo espelho onde os adolescentes se veem. Se esse espelho devolve imagens de ódio, solidão e desprezo, isso impacta diretamente sua identidade em construção, como o efeito boomerang.”

A DIFÍCIL ARTE DE EDUCAR NO PRESENTE

Como mãe de dois meninos, Lucinara mantém regras rígidas sobre o uso de celulares e redes sociais em casa. Ela defende o equilíbrio entre estudo, lazer e tecnologia, buscando retardar ao máximo a exposição dos filhos aos aplicativos. Para ela, o uso excessivo do celular é nocivo e perigoso, e o diálogo constante em família é essencial para a formação saudável das crianças e adolescentes.

Ao final da série, muitos pais se perguntam: onde erramos? Como proteger sem sufocar? Como permitir liberdade sem gerar desamparo? “Essas perguntas não têm respostas fáceis, mas precisam ser feitas todos os dias”, afirma Cláudia. “A arte de conviver requer presença e precisamos estar ali — mesmo na dúvida, mesmo no medo.”

A série Adolescência não traz soluções, mas nos suscita uma urgência nos diálogos e reflexões. Necessitamos da consciência de que os perigos de um modo geral, incluindo a internet, são reais, mas que a proteção passa, antes de tudo, pela presença — aquela que escuta, acolhe, mas também constrói limites. Porque, como afirma Winnicott, citado por Cláudia: “Onde existe o desafio de um jovem em crescimento, que haja um adulto para encará-lo. E não é obrigatório que isso seja agradável.”

CRIMES CIBERNÉTICOS

“É urgente que os pais compreendam a linguagem e os códigos usados pelos adolescentes na internet”, diz o delegado

Em Torres, o delegado ressalta que, no ano de 2024, foram registrados dois boletins de ocorrência na Delegacia de Exploração Sexual e Pornografia Infantil e Juvenil, com foco em crimes de pedofilia na internet. Em um dos casos, no dia 27 de agosto de 2024, policiais da delegacia local, com o apoio de agentes do DECA/Canoas, cumpriram um mandado de busca e apreensão em um apartamento localizado no centro de Torres. Durante a operação, foram encontrados, em um computador, diversos arquivos contendo pornografia infantil. Diante dos fatos, foi dada voz de prisão ao suspeito, que foi encaminhado ao presídio.

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