Após atravessar diversas cidades do Sul do Brasil, Robson chega a Torres em busca de emprego e de um lugar para chamar de lar.
Sob o abrigo improvisado de papelões e mantas finas na calçada da antiga rodoviária de Torres, Robson Lima Recuero, de 46 anos, espera por uma oportunidade que possa mudar sua trajetória. Há sete dias na cidade de Torres, ele carrega consigo uma história marcada por perdas e desafios. Natural de Alegrete, no Rio Grande do Sul, Robson saiu de casa aos 12 anos após a morte dos pais, iniciando uma vida itinerante que já o levou a diversas cidades do Sul do Brasil em busca de trabalho e uma vida nova.
“Eu nem sei quantas cidades já fui, perdi as contas. Mas foram muitas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul. Hoje estou envelhecendo, quero achar um lugar para ficar”, desabafa Robson.
O inquilino das ruas de Torres diz ser muito bom e que possui experiência em acabamentos na construção civil e artista autodidata, com habilidades em pintura de quadros. Robson enfrenta a realidade das ruas com dignidade. “Se eu tiver uma oportunidade de trabalho com um salário digno, saio da rua na hora”, afirma ele, que planeja permanecer em Torres até 18 de dezembro na esperança de encontrar uma chance de recomeçar.
Mesmo em situação de vulnerabilidade, Robson mantém uma aparência bem cuidada, algo que ele considera fundamental para se diferenciar. “É importante, porque mostra que não sou apenas mais um. Tenho habilidades, sei trabalhar e quero uma oportunidade”, explica.
IMPACTOS NO COMÉRCIO
A presença de Robson nas calçadas de Torres é um retrato da crescente população em situação de rua na cidade, fenômeno que ganhou força nos últimos anos. Segundo o comerciante Claudio Manoel Bauer, proprietário da Lancheria Du Claudinho, localizada na antiga rodoviária, o aumento dessa população é notável desde a pandemia de COVID-19 e se intensificou após as enchentes de maio no estado.
“Essa região do centro, em torno da antiga rodoviária, assim como no entorno do salão paroquial da Paróquia São Domingos, se tornou um ponto crítico. O aumento das pessoas em situação de rua trouxe problemas de segurança, com brigas, uso de drogas e prostituição, o que afasta os clientes e prejudica o comércio local”, relata Claudinho.
Ele defende que a nova administração municipal tome medidas urgentes para revitalizar a área e reverter o cenário de abandono.
EX-MORADOR DE RUA LUTA PELA CAUSA
Nilton Policena, natural de Guarani das Missões/RS e residente em Torres há oito anos, tem uma trajetória marcada pela superação e engajamento. Após viver em situação de rua por uma década, Nilton construiu uma nova vida, conquistou residência própria e hoje atua como coordenador do Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua no Rio Grande do Sul. Além disso, participa ativamente de iniciativas nacionais, como o Comitê Interministerial de Acompanhamento e Monitoramento das Políticas para a População em Situação de Rua (CiAMP-RUA), ligado ao Ministério dos Direitos Humanos, e do Comitê Técnico de Saúde Nacional do Ministério da Saúde. Ele também é acadêmico de Serviço Social, refletindo seu compromisso com a causa.
Nilton destacou que o número de pessoas em situação de rua tem crescido de forma alarmante, tanto em Torres quanto no Brasil. Segundo ele, comparando os dados de 2019 com os atuais, houve um aumento de 50%, e, ao longo da última década, a alta foi de quase 300%. Para ele, esse fenômeno está diretamente relacionado à ausência de políticas públicas efetivas. “O que tira a pessoa da rua é política pública: educação, moradia, saúde e assistência. Sem essas ações integradas, é impossível mudar essa realidade”, afirmou.
Nilton também apontou para a responsabilidade legal dos municípios em implementar políticas voltadas à população em situação de rua. Ele mencionou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, que determina que municípios devem prestar assistência a essa população, incluindo a criação de espaços de acolhimento e programas específicos. “Remover pessoas em situação de rua sem oferecer alternativas é crime. Isso inclui tirar pertences pessoais ou promover ‘higienizações’ sem suporte adequado”, alertou.
Torres, de acordo com dados levantados pelo próprio município e informados no Levantamento sobre a População em Situação de Rua no Rio Grande do Sul, registrava 180 pessoas vivendo nas ruas entre novembro de 2023 e março de 2024. Esse número, como destacou Nilton, é mais do que suficiente para justificar a criação de um consultório na rua, programa 100% financiado pelo governo federal. Contudo, ele aponta que movimentos sociais identificaram números ainda maiores e cobram maior transparência e comprometimento das autoridades locais.
Dados atualizados pela Secretaria Municipal de Assistência Social de Torres, referentes ao período de 1º de janeiro a 10 de dezembro de 2024, revelam que o número mais que dobrou, totalizando 375 pessoas em situação de rua cadastradas no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Esse número, entretanto, pode estar subnotificado, já que nem todos os recém-chegados à cidade procuram o Creas ou são abordados por técnicos da Assistência Social Municipal.
Outro ponto enfatizado por Nilton foi a necessidade de combater a Aporofobia (aversão a pessoas em situação de rua) e outras formas de discriminação. Ele criticou abordagens sensacionalistas em reportagens e na opinião pública, que perpetuam preconceitos e afastam soluções efetivas. “O problema não é apenas da assistência social, mas de todas as áreas das políticas públicas. Precisamos olhar para a dignidade da pessoa humana e construir soluções reais.”
Nilton enalteceu o trabalho conjunto com o Ministério Público Estadual e demais órgãos, mas ressaltou que há muito a ser feito. Ele destacou a importância de incluir a população em situação de rua nos debates e na formulação de políticas, além de cobrar ações consistentes e permanentes. “Dar um cobertor não resolve. É preciso garantir moradia, saúde, educação e assistência. Apenas com políticas públicas conseguimos transformar essa realidade.”
SOLUÇÕES EM DISCUSSÃO
Na manhã da última segunda-feira (9), durante entrevista na Rádio Maristela, a promotora de Justiça da Comarca de Torres, Dra. Dinamarcia Maciel de Oliveira, trouxe atualizações sobre a questão da população em situação de rua no município. O tema foi amplamente debatido em uma recente reunião envolvendo o Ministério Público, a Brigada Militar, a atual administração municipal e o prefeito eleito de Torres, Delci Dimer.
“Torres é uma cidade litorânea e, no verão, atrai pessoas em busca de doações, esmolas e oportunidades. Isso faz parte do movimento natural da alta temporada, mas o aumento expressivo que estamos observando vai além disso”, afirmou a promotora.
Dra. Dinamarcia destacou que há uma preocupação crescente em relação ao aumento significativo de pessoas em situação de rua na cidade, especialmente com a proximidade da alta temporada de verão. Esse crescimento, segundo relatos, inclui denúncias de que ônibus vindos de outros municípios e até de Santa Catarina estariam deixando pessoas vulneráveis na região. Apesar das especulações, não foram encontradas provas concretas para essas alegações.
A promotora afirmou que durante a reunião, foram estabelecidas diversas diretrizes para lidar com a questão de forma pontual, entre elas:
– Registro de Boletins de Ocorrência
A promotora ressaltou a importância de que os cidadãos registrem ocorrências em situações de intimidação ou coação, seja por parte de pedintes armados ou de flanelinhas que atuam irregularmente. Esse registro é fundamental para que as polícias possam agir com maior eficácia e legitimidade.
– Abordagens de Pessoas em Situação de Rua
A Brigada Militar foi orientada a intensificar as abordagens, especialmente em casos onde há uso de armas brancas, como facões e facas, em apresentações artísticas que evoluem para pedidos de dinheiro de forma intimidatória. Segundo a promotora, tais ações podem ser classificadas como roubo em situações específicas.
– Flanelinhas
Foi discutida a ocupação irregular de áreas públicas por flanelinhas, que chegam a impor valores fixos para o estacionamento gratuito na cidade. A Secretaria de Assistência Social e a Brigada Militar deverão atuar em conjunto para abordar e coibir essas práticas.
– Ofícios e Monitoramento
O Ministério Público decidiu expedir ofícios para órgãos como a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Rodoviária Estadual e o DAER, com o objetivo de monitorar possíveis ônibus clandestinos que transportem pessoas em situação de vulnerabilidade para Torres.
– Cadastro de Pessoas em Situação de Rua
A futura administração municipal se comprometeu a criar um cadastro formal dessa população, preservando os dados sensíveis conforme a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Esse registro será utilizado para direcionar políticas públicas mais eficazes e facilitar o compartilhamento de informações com as forças de segurança.
– Gabinete de Crise e Comunicação Rápida
O prefeito eleito Delci sinalizou a criação de um gabinete de crise já em janeiro, com foco em resolver questões relacionadas à segurança e à assistência social. Além disso, será criado um grupo de comunicação instantânea entre Ministério Público, Brigada Militar e Polícia Civil, para agilizar a troca de informações e respostas às ocorrências.
Dra. Dinamarcia reforçou a importância da colaboração dos cidadãos, incentivando-os a registrar situações suspeitas, como a circulação de ônibus clandestinos ou abordagens intimidadoras. A promotora também destacou a necessidade de equilibrar os direitos das pessoas em situação de rua com os direitos da comunidade, especialmente comerciantes que relatam impactos em seus negócios devido à presença constante de moradores de rua nas proximidades.
A reunião foi elogiada pelos participantes, incluindo o delegado de polícia Marcos Vinicius Muniz Veloso, que destacou a importância da integração entre as forças de segurança e os órgãos públicos. Ele também garantiu que a delegacia local está empenhada em identificar e responsabilizar eventuais envolvidos em práticas ilícitas.
POPULAÇÃO DE RUA CRESCE EM TODO BRASIL
A situação de Torres reflete um problema que tem se agravado no Rio Grande do Sul e em todo o Brasil. Segundo o Levantamento sobre a população em situação de rua no Estado, com dados coletados entre 09/11/2023 e 14/03/2024, Rio Grande do Sul possui 11.635 pessoas em situação de rua.
Dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas para a População em Situação de Rua (OBPopRua/POLOS-UFMG) mostram que, entre dezembro de 2023 e setembro de 2024, cerca de 176 pessoas passaram a viver nas ruas diariamente, elevando o total para quase 310 mil indivíduos no país.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que a exclusão econômica, a quebra de vínculos familiares e os problemas de saúde, principalmente mental, são as principais causas dessa crise. O desemprego e o déficit habitacional levam muitas pessoas a buscar abrigo com familiares ou amigos, mas conflitos nesses lares frequentemente as empurram para as ruas.
ENTRE A LUTA E A ESPERANÇA
Robson, como muitos outros, personifica as estatísticas e expõe a urgência de ações concretas. “Eu já percorri o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e até o Mato Grosso. Sempre trabalhei quando conseguia, mas nunca tive um lugar fixo. Se eu tivesse essa oportunidade, sairia das ruas agora mesmo”, desabafa.
A história de Robson é um apelo por visibilidade e dignidade, um convite para que a sociedade e o poder público olhem além das estatísticas e reconheçam os indivíduos por trás dos números. Enquanto espera por uma oportunidade, ele mantém viva a esperança de que seu talento e determinação possam abrir portas e transformar sua realidade.
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